É permitida a reprodução parcial ou total deste texto desde que citada a fonte:
Russomano, F., 2000. Tratamento da infecção subclínica pelo HPV no colo uterino: consenso e controvérsias Available from: URL: http://www.cervical.com.br - Jornal Brasileiro de DST, 1998: 6; 27-36.

Tratamento da infecção subclínica pelo papilomavirus humano (HPV)no colo uterino: consenso e controvérsias.

The treatment of subclinical Human Papillomavirus (HPV) cervical infection: consensus and controversy.

Fábio Russomano; Maria José de Camargo; Aldo F. F. Reis; Ana Lucia T. Sequeira; Maria Virgínia P. Dutra e Sandra C. Fonseca

Resumo

O tratamento da forma subclínica de infecção pelo papilomavirus humano (HPV) tem sido alvo de controvérsia. Trata-se de infecção muito prevalente e com forte associação ao câncer cérvico-uterino. Existem vários tratamentos propostos para esta infecção mas a maioria dos autores concorda em que o tratamento de sua forma subclínica é uma tarefa difícil e que nenhuma terapia atualmente disponível é capaz de erradicar o vírus. Apesar disto, alguns autores recomendam terapias que variam desde a destruição ou exérese da zona de transformação do colo uterino até a excisão de todas as lesões identificáveis causadas pelo HPV. Outros, considerando as limitações dos meios terapêuticos disponíveis, recomendam apenas que estas pacientes devem ser mantidas em observação com o objetivo de detectar e tratar lesões pré invasoras (neoplasias intraepiteliais - NIC, displasias), caso apareçam. Outras medidas comumente adotadas são discutidas considerando sua efetividade e conseqüências psicológicas e conjugais. Discutimos esta controvérsia com base na metodologia utilizada por vários autores de revisões e citamos a ausência de evidências de eficácia de tratamentos para a forma subclínica da infecção pelo HPV no colo uterino sem NIC. Concluímos que, até que surja alguma evidência de eficácia terapêutica para esta form da infecção, estas pacientes devem ser mantidas em controle citológico e colposcópico com o objetivo de prevenir o câncer cérvico-uterino.

Descritores: Human papillomavirus; treatment; cervical cancer.

Introdução

O tratamento da infecção subclínica pelo papilomavirus humano (Human Papillomavirus - HPV) tem sido alvo de discussão e está longe de um consenso sobre sua indicação. Revendo a literatura, renomadas autoridades no assunto recomendam tratamentos bastante lógicos e coerentes porém sem comprovação clínica de sua efetividade, enquanto outros recomendam apenas tratar as lesões clínicas e observar as lesões subclínicas.

Esta discussão tem seus efeitos em nossa prática diária, na qual observamos a utilização de uma gama de formas terapêuticas, algumas possivelmente mais prejudiciais do que benéficas, tornando nossa assistência inefetiva ou até danosa.

Nosso objetivo é mostrar o que de consenso e controvérsia existe entre os autores, numa tentativa de contribuir para a nossa prática clínica. Também, a título de contribuição, discutimos os resultados de revisão sistemática da literatura médica realizada com o objetivo de procurar evidências de eficácia de tratamentos propostos para a infecção subclínica pelo HPV no colo uterino sem neoplasia intraepitelial.

Importância da infecção pelo HPV

A infecção pelo HPV ganhou importância a partir de sua associação com o câncer cérvico-uterino. Atualmente já existem evidências suficientes de que os HPVs 16/18 são carcinogênicos para o homem, enquanto existem evidências sugerindo falta de capacidade oncogênica dos HPVs 6/11 e limitadas evidências da oncogenicidade de outros tipos de HPV(1).

Ressalta esta importância, a sua alta prevalência. Esta pode ser a doença viral sexualmente transmissível mais freqüente atualmente nos Estados Unidos. É comum em todas as raças e grupos sócio-econômicos e parece ter prevalência significativa em todo o mundo entre pessoas sexualmente ativas.

Segundo Schiffman(2), as informações obtidas dos estudos transversais sobre a prevalência do HPV por faixas etárias permite inferir que o contágio pelo HPV acontece no início da vida sexual, na adolescência ou por volta dos 20 anos. Esta infecção será transitória na maioria das vezes e não haverá evidência clínica de doença, que poderá ser suprimida ou até curada. Outras apresentarão lesões de menor importância que podem regredir espontaneamente.

Uma minoria de mulheres desenvolverá uma infecção persistente pelo HPV, talvez como resultado de incompetência imunológica. Algumas destas infecções persistentes contêm tipos virais mais freqüentemente associados aos precursores mais graves do câncer cervical e progredirão para estas lesões. A maior parte destes diagnósticos dá-se entre os 25 e 29 anos, enquanto os diagnósticos de câncer cervical são mais freqüentes entre 35 e 39 anos(2). Evidências sugerem que a persistência de HPVs de alto risco é o que determina o maior risco de desenvolvimento das neoplasias intraepiteliais cervicais (NIC)(3,4).

A prevalência do HPV foi estimada em várias partes do Mundo. Em um estudo caso-controle sobre a associação do HPV ao câncer cervical conduzido em vários países, a prevalência do HPV nos controles foi avaliada por meios de diagnóstico molecular. Esta prevalência situou-se entre 13% a 20% em países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil. A prevalência do HPV na Europa Ocidental e Estados Unidos situou-se em menos de 10% na faixa etária de 40 anos ou mais(5).

Implicações clínicas

Acreditava-se, até meados da década de 70, que apenas um vírus causava os condilomas. Atualmente são conhecidos 77 tipos diferentes de HPV que são agrupados em função das associações patológicas e especificidade cutânea ou mucosa.

Os 25 tipos associados a infecção mucosa podem ser divididos em de alto risco e baixo risco para progressão maligna. Cada tipo recebe uma denominação numérica de acordo com a ordem de sua identificação como um novo tipo. Um novo tipo é identificado quando a seqüência de bases de seu DNA tem menos de 50% de homologia com as demais seqüências conhecidas(6).

a. Modo de transmissão

Ferenczy(3) afirma que maioria das infecções pelo HPV se desenvolvem após o primeiro coito ou primeiro contato direto da genitália com áreas contaminadas, mesmo sem penetração anal ou vaginal. Outros meios de transmissão, como através de roupas íntimas, espéculos contaminados, fumaça gerada em tratamentos destas lesões são muito improváveis de serem contaminantes.

b. Formas de apresentação

A infecção pelo HPV tem sido descrita em três formas de apresentação: clínica, subclínica e latente:

O significado biológico da forma latente é desconhecido e não se sabe quanto tempo o vírus pode permanecer neste estado nem quantos casos progridem desta forma de infecção para as demais. Segundo Ferenczy(9), a presença do HPV em tecidos normais seria a responsável pela recorrência de lesões apesar dos tratamentos.

Formas terapêuticas existentes, suas limitações e efeitos adversos

As formas terapêuticas correntes para a forma clínica de infecção pelo HPV podem ser classificadas em destrutivas ou excisionais e imunomoduladoras.

a. Formas de terapia destrutiva ou excisional

Nesta forma de terapia o objetivo é eliminar as células infectadas e incluem a destruição tecidual ou citotoxicidade química. Nenhum dos tratamentos correntemente usados são antivirais porque a citodestruição não é seletiva. Todavia, a citólise pode expor os antígenos virais, estimulando uma resposta imune benéfica(10).

Técnicas cirúrgicas usadas com algum sucesso são: excisão local, crioterapia, vaporização por laser de CO2 e eletrocauterização(11). Estas terapias podem ser dolorosas, deformantes, e, em lesões extensas, impraticáveis. Ainda, não está claro se as freqüentes recorrências são devidas à reativação de infecção subclínica ou latente de epitélio normal que foi deixado sem tratamento(11).

Assim como a destruição física, a citotoxicidade não tem especificidade para os tecidos infectados, podendo levar a lesões importantes nas áreas clinicamente sadias(11).

Também consideramos formas de terapia destrutiva ou excisional os ácidos orgânicos bi- e tricloroacéticos, Thuya Occidentalis e exérese por alça diatérmica. Dentre as drogas citotóxicas incluímos a podofilina, a podofilotoxina, o 5-Fluorouracil e a bleomicina.

b. Formas de terapia por imunomodulação

Uma característica marcante das doenças relacionadas ao HPV é a possibilidade de remissão espontânea devida à resposta imune sistêmica. Por esta razão, a estimulação do sistema imune tem sido atrativa. Dentre estes métodos, ressaltamos a vacina autógena, o levamisole, o dinitroclorobenzeno, o BCG (bacille Calmette-Guérin) e o interferon(11). Mais recentemente, têm sido descritos também o imiquimod e as vacinas com partículas do HPV.

c. Descrição sumária das formas de terapia

A seguir descreveremos sumariamente o mecanismo de ação, esquemas terapêuticos e principais complicações das formas de terapia mais citadas.

A podofilina é o medicamento mais antigo usado no tratamento de condilomas. É um extrato alcoólico de uma resina vegetal derivada das espécies Podophyllum peltatum (americana) ou Podophyllum emodi (indiana). É uma mistura complexa de vários componentes que são anti-mitóticos, sendo um deles mais ativo, a podofilotoxina. Esta substância inibe a mitose celular e produz vasoespasmo da região. Causa irritação local e, se absorvida em quantidades significativas, pode ser tóxica para o coração, rins e sistema nervoso. Por este motivo, não deve ser usada em locais que possibilitem grande absorção como colo e vagina, devendo ser aplicada pelo médico e o local de aplicação deve ser lavado em 4 a 6 horas após a aplicação. Freqüentemente necessita de várias aplicações e pode ser teratogênica, estando seu uso contra-indicado durante a gestação. Até o momento não parece ser tão efetiva que mereça ser recomendada como primeiro tratamento(11,12,18).

São ácidos utilizados em soluções de 45 a 95% em álcool a 70%, com efeito cáustico. Causam necrose tissular onde são aplicados. Não têm efeitos sistêmicos e podem ser usados em vagina e colo, bem como durante a gravidez. O grau de necrose tecidual é dependente do tempo de exposição às substâncias e, como a podofilina, requerem freqüentemente mais de uma aplicação. Pela facilidade de uso e razoável segurança têm sido preferidos no lugar da podofilina, apesar de não parecerem mais efetivos do que outras drogas(11,12,18).

O 5-FU é um análogo da pirimidina que compete com esta pela timidilato-sintetase e, assim, bloqueia a síntese de DNA e a divisão celular. Também pode bloquear a síntese de RNA. É agente antineoplásico de uso sistêmico e usado topicamente por dermatologistas para tratar ceratose actínica. Pelo seu mecanismo de ação, foi proposto para uso em viroses, incluindo a infecção pelo HPV. Até 1998 não tinha sido aprovado nos Estados Unidos para uso em condilomas e é contra-indicado na gravidez. Sua aplicação contínua resulta em vesiculação e erosões da epiderme por dermatite química. Superfícies mucosas tendem a reagir mais precocemente, causando corrimento vaginal e erosões de difícil tratamento(11,12,18).

É quimioterápico produzido por um fungo que tem sido usado intralesionalmente em condilomas. Seu mecanismo de ação é ligar-se ao DNA celular e impedir sua replicação. As injeções são dolorosas e são comuns as reações inflamatórias locais severas. Se a injeção for mais profunda, pode causar extensa necrose tecidual. Sua efetividade não é clara(11,12,18).

Outros autores incluem, ainda, a Thuya Occidentalis, "medicamento de origem vegetal muito usado na homeopatia que atua sobre proliferações cutaneomucosas do tipo vegetante. Tem propriedades cáusticas, anestésicas, bactericidas e antiviróticas"(13) (pág.: 99) no que a caracterizaria como forma de terapia destrutiva. Seus resultados são discutíveis e têm divulgação quase exclusivamente em nosso meio.

É método apropriado para o tratamento de poucas lesões a nível ambulatorial, especialmente quando é desejável exame histopatológico do espécime. Sua indicação também está associada ao tamanho da lesão: lesões maiores podem apresentar pequena resposta às técnicas destrutivas. Exige anestesia local(11,18).

Este método utiliza um eletrocautério para remover ou fulgurar lesões isoladas. Requer anestesia e, como o controle da profundidade do efeito é difícil, pode levar a necrose tecidual extensa e estenose em estruturas tubulares como canal anal e vagina(11).

Neste método é feita destruição térmica pelo nitrogênio líquido, CO2 sólido ou dispositivos metálicos resfriados por óxido nitroso ou CO2 (criocautérios). É útil em poucas lesões ou lesões muito ceratinizadas e apresenta os mesmos problemas da eletrocauterização, apesar de raramente necessitar anestesia(11,12).

Em mãos experientes, o laser de CO2 é muito efetivo no tratamento de condilomas. Causa destruição local com controle de profundidade de lesão tecidual com rápida cicatrização e bom efeito estético. Todavia é de alto custo e requer anestesia para sua realização(11).

É chamado de vaporização à laser pelo efeito de ebulição da água intracelular e subseqüente lise celular que a alta energia oriunda do feixe luminoso provoca. As complicações incluem dor, secreção local, ulceração, infecção e cicatrização demorada. Cicatrizes permanentes também podem acontecer. Os resultados são conflitantes em termos de recorrência e persistência de lesões subclínicas(12).

Método que consiste na utilização de um eletrobisturi de alta freqüência com eletrodo metálico com diversos formatos, capazes de fazer uma excisão local no colo uterino sob controle colposcópico. Sua aplicação vem sendo advogada para exérese de qualquer lesão benigna ou NIC. Sua vantagem sobre o laser é o baixo custo e sobre as técnicas destrutivas a de fornecer fragmentos teciduais para exame histopatológico. Este procedimento requer anestesia e exige treinamento do operador.

Neste tipo de tratamento, fragmentos de condilomas do próprio paciente são tratados de forma a obter um preparado rico em antígenos virais que depois é injetado no próprio paciente. Seus resultados são conflitantes(11).

O BCG é um grande estimulador da imunidade celular e é recomendado por alguns autores para uso intralesional(14). Tem sucesso limitado(10).

Os interferons são proteínas produzidas por células envolvidas na resposta imune que podem ser obtidas em cultura de linfócitos humanos ou por técnicas de biologia molecular. Têm propriedades anti-virais, imunopotencializadoras e atividade antiproliferativa. Suas principais desvantagens, além do alto custo, são os efeitos adversos da administração sistêmica parenteral que podem ser importantes. São relatados hipertermia, cefaléia, náuseas, mialgia e fadiga. Efeitos mais importantes incluem anormalidades hematológicas e hepáticas(12).

Para evitar os efeitos adversos do uso sistêmico, estas drogas têm sido utilizadas topicamente ou intralesionalmente. Os resultados nestas duas vias de administração são contraditórios(14).

Uma nova droga com propriedades imunomoduladoras para uso tópico foi testada com resultados satisfatórios quanto ao desaparecimento das lesões vegetantes: o imiquimod. Foi recentemente aprovada para uso nos EUA e Canadá, para tratamento de lesões clínicas, inclusive para auto-aplicação, sob a forma de creme. Ainda não foi aprovado para uso em gestantes.

Também têm sido descritos resultados animadores de experimentos em animais com vacinas com partículas do HPV, altamente antigênicas e não carcinogênicas.

Consenso e controvérsia no tratamento da infecção pelo HPV

A força da associação entre os HPVs de alto risco e neoplasia cervical induz pacientes e médicos a tratar qualquer forma de infecção pelo HPV. Todavia, "a capacidade do vírus de estabelecer uma infecção latente e a falta de um agente antiviral específico faz disto um objetivo difícil"(15) (pág.: 1.187).

A maioria dos autores consultados concorda em vários pontos, resumidos no Quadro 1. A indicação do tratamento para as lesões clínicas (condilomas) não é discutida, já que são desfigurantes, podem confluir e tornarem-se grandes, podendo ser repetidamente traumatizadas ou infectadas, obstruir a uretra e a vagina(8). A forma terapêutica escolhida depende da experiência pessoal de cada um e existe sempre uma possibilidade significativa de recorrências.

Quanto à indicação de tratamento para infecção subclínica pelo HPV é que observamos uma grande discussão. A maioria admite a dificuldade em tratar esta forma de infecção pelo HPV e a impossibilidade de tratamento da forma latente(6,8,9,11,14). A posição de vários autores sobre a indicação do tratamento da forma subclínica de infecção pelo HPV no colo uterino é resumida no Quadro 2.

Para alguns, o principal motivo do tratamento de todas as formas de infecção pelo HPV seria o controle da disseminação da doença(12,15). Todavia, segundo Kraus & Stone(14), "nenhum estudo mostrou de forma consistente que a terapia erradica o vírus" (pág.: S628).

Reid & Campion(9) introduziram um conceito de "semente e solo" em que a "semente" seria um HPV de alto risco e o "solo", a zona de transformação. Com este conceito, acreditavam que a destruição "da zona de transformação permanece como a abordagem mais custo efetiva para diagnósticos histopatológicos de ‘atipia coilocitótica sem displasia concomitante’" (pág.: 168), ou seja, recomendavam destruir o "solo" que apresente infecção pelo HPV sem NIC para prevenir o desenvolvimento futuro de neoplasia. São acompanhados nesta opinião por vários outros autores.

Outros autores, alegando desconhecerem o risco potencial de desenvolvimento neoplásico em regiões do colo infectadas pelo HPV recomendam a exérese de todas as lesões identificáveis no colo uterino(16,17).

Reid(18), mais recentemente, reforça a proposta de destruição da zona de transformação, apesar de reconhecê-la como empírica. Acredita que, com a redução do custo das técnicas de diagnóstico molecular, este método poderia ser aplicado apenas àqueles casos em que for demonstrada a presença dos HPVs de alto risco.

Ferenczy(3), também recentemente, utiliza a tipagem do HPV em sua conduta, indicando alguma forma de terapia destrutiva ou cirúrgica sobre a zona de transformação quando estiverem presentes os HPV de alto e médio risco. Quando a tipagem não estiver disponível cita como conduta viável o controle citológico e colposcópico com biópsias, quando presentes atipias.

Possíveis razões para a controvérsia

Como observamos, é razoável a discussão entre importantes autores na área sobre a indicação da infecção subclínica pelo HPV. Um dos motivos para este desacordo seria a forma não sistemática de busca e análise de estudos que empregam quando redigindo um artigo de revisão ou capítulo de livro.

Segundo Oxman & Guyatt(19), revisões da literatura médica são uma estratégia para lidar com a grande quantidade de artigos disponíveis na atualidade. Todavia estas revisões podem ser conduzidas de forma não científica e informar erroneamente os leitores. Freqüentemente revisões sobre o mesmo tema chegam a conclusões opostas e o crédito em suas conclusões é mais uma questão de gosto do que de ciência. O grau de conhecimento de um autor não é critério suficiente para credibilidade de sua revisão, já que experts, revendo o mesmo tema, chegam a conclusões diferentes.

Segundo Mulrow(20), o processo de refinar informações exige exploração crítica, avaliação e síntese.

"Infelizmente, revisões médicas são freqüentemente subjetivas, pouco científicas e ineficientes. Estratégias para identificar e selecionar informações são raramente definidas. A informação coletada é revista de forma desordenada e com pouca atenção para avaliação sistemática da qualidade" (pág.: 485).

Vários autores recomendam, para diminuir controvérsias como a aqui exposta, a realização de revisões sistemáticas. Um revisão sistemática (do inglês systematic review ou overview) consiste na "aplicação de estratégias científicas que limitam vieses para reunir trabalhos de forma sistemática, avaliá-los criticamente e sintetizar todos os estudos relevantes sobre um tema específico"(21) (pág.: 167). Revisões sistemáticas resumem evidências científicas enquanto as demais reúnem opiniões e, possivelmente, evidências. Sua maior objetividade é a clara vantagem sobre as revisões narrativas mais subjetivas.

Com o objetivo de esclarecer a controvérsia quanto ao tratamento da infecção subclínica pelo HPV, realizamos uma revisão sistemática da literatura buscando evidências de eficácia de alguma terapia da forma subclínica da infecção pelo HPV sem neoplasia intraepitelial no colo uterino(22).

Naquela oportunidade realizamos extensa busca de referências bibliográficas no Medline, LILACS, Excerpta Medica, AIDSLINE, Popline, Cochrane Library, além de listas de referências de vários autores, para identificação de trabalhos sobre qualquer forma terapêutica da infecção subclínica pelo HPV sem neoplasia intraepitelial no colo uterino. Também foram consultados especialistas na área, livros de resumos de congressos, registros de ensaios clínicos, companhias farmacêuticas, organismos governamentais e financiadores de pesquisas, além de endereços eletrônicos na Internet, na busca de trabalhos não publicados sobre o assunto.

Identificamos 67 estudos relacionados ao tema. Estes estudos foram mascarados e submetidos a critérios de inclusão previamente estabelecidos, que procuravam caracterizar a validade interna de cada estudo. Após aplicação dos critérios de inclusão, resultaram em cinco ensaios clínicos randomizados. Todavia nenhum dos estudos incluídos demonstrou diferenças significativas entre os grupos em teste e controle em termos de regressão de lesões subclínicas pelo HPV ou quanto à progressão para NIC

Assim, concluímos o estudo sem encontrar evidência de eficácia de alguma forma terapêutica para a infecção subclínica pelo HPV sem neoplasia intraepitelial no colo uterino, na literatura médica disponível.

Contactados por correspondência na ocasião da realização do estudo citado acima, os seguintes autores, entre outras informações, prestaram os seguintes depoimentos sobre o tratamento da forma subclínica de infecção pelo HPV no colo uterino:

Para outros autores, apesar de a eliminação de um fator de risco para o desenvolvimento neoplásico parecer ser um posicionamento bastante lógico, alegam que isto baseia-se inteiramente no papel do HPV na patogênese do câncer cervical, o que não depende apenas deste patógeno. Assim, segundo Ling(8) "o papel deste tratamento permanece desconhecido" (pág.: 685). As evidências do insucesso no tratamento das formas subclínicas e latentes diminuíram o entusiasmo para este tratamento. Por outro lado, o tratamento convencional das NIC, independente da presença de HPV, continua altamente efetivo em prevenir o câncer cérvico-uterino:

"Como não podemos curar a infecção pelo HPV e obtemos sucesso no tratamento das displasias cervicais, a conclusão aparece claramente: a conduta para displasia cervical relacionada ao HPV e câncer necessita que a NIC seja detectada num estágio precoce e tratada adequadamente. Pacientes com infecção [pelo HPV] demandam rastreio apropriado para displasia, que pode utilizar a tipagem do HPV para determinar o risco relativo para câncer associado com uma cepa particular de HPV com a qual estão infectados" (...) "Infecção cervical pelo HPV na ausência de NIC, provavelmente, não requer tratamento"(8 ) (pág.: 685).

Infecção em outros locais que não o colo uterino e papel do parceiro

O tratamento da infecção pelo HPV em outros sítios anogenitais que não o colo uterino (vulva, vagina, pênis e ânus) também é alvo de discussão. Apesar disto, existe concordância na indicação de tratamento das lesões clínicas. O tratamento das lesões subclínicas é menos indicado diante da impossibilidade atual de erradicar o vírus, da possível morbidade dos tratamentos nestes locais e, principalmente, pela baixa freqüência de malignidade. Não há indicação de tratamento da infecção latente pela inexistência de um agente anti-viral específico.

O papel do parceiro, até recentemente culpado pelas freqüentes recidivas ou persistência da infecção, vêm diminuindo de importância. Ferenczy(3) afirma que "o tratamento das lesões subclínicas no parceiro masculino não reduz as taxas de falha de cura de condilomas anais e vulvares, assim como das lesões intraepiteliais cervicais". Algumas observações sugerem que a recorrência após tratamentos efetivos, numa relação monogâmica são causadas, mais provavelmente, por ativação da infecção latente de que a paciente é portadora, do que por uma possível re-infecção pelo parceiro.

Isto diminui em muito a importância do uso do condom, do diagnóstico de lesões subclínicas pela peniscopia e tratamento destas lesões no homem numa relação monogâmica em que ambos os parceiros estão contaminados.

Reid(18) endossa esta idéia, declarando que "não existem benefícios definidos para o tratamento dos parceiros sexuais numa união estável" (pág. 299), e que os benefícios nestas circunstâncias são dirigidos especificamente aos parceiros masculinos, mais do que à própria paciente, tratando as lesões relevantes no homem.

Considerações acerca do discurso profissional

Outros aspectos relevantes desta infecção viral que devem ser levados em consideração pois dizem respeito a questões que extrapolam a esfera biológica. Quando estabelece-se o diagnóstico da infecção pelo HPV, dois "fantasmas" são criados: o do câncer e o da multiplicidade de parceiros. Ambos são injustificáveis e devem ser afastados pelo médico. O risco de câncer cervical ainda não está estimado por estudos prospectivos e poderíamos assegurar que aquelas pacientes que desenvolvam lesões pré invasivas graves, reais precursores do câncer cervical, poderão ser submetidas a tratamentos altamente efetivos em prevenir o câncer invasor.

Quanto ao segundo "fantasma", da multiplicidade de parceiros, baseia-se em conceito que desconsidera todo o conhecimento atual sobre a história natural da infecção. Como sabemos, o HPV pode permanecer durante anos no estado latente, sendo responsável pelo aparecimento ou reaparecimento de lesões independentemente da relação conjugal monogâmica. Na prática, quando nos defrontamos com o diagnóstico da infecção pelo HPV, raramente podemos afirmar quando houve a contaminação inicial. Portanto, qualquer afirmação a esse respeito torna-se imprudente, retratando não só desconhecimento como a representação dos valores culturais dos próprios profissionais na abordagem junto a seus pacientes.

A indicação universal do tratamento da infecção pelo HPV pode levar à interpretação por parte de pacientes e de médicos, de que algum tratamento atual pode levar à cura. Quando, como ocorre freqüentemente, são detectadas alterações persistentes ou recorrentes relacionadas ao HPV, são revigorados os fantasmas do câncer inevitável e da infidelidade: houve "insucesso" terapêutico ou uma nova contaminação pelo parceiro, o que gera medo, angústia e, por vezes, conflito conjugal.

Ainda, questionamos a validade de persuadir nossos pacientes ao uso de condom numa relação em que ambos estão contaminados pelo HPV com o único objetivo de prevenir re-infecção. Parece-nos que estamos introduzindo mais um elemento complicador de uma relação já abalada pela culpa e pelo medo do câncer. Acreditamos que esta prática tem o único efeito de lembrar aos parceiros, em momento especial para ambos, que são portadores desta condição, sem nenhuma comprovação científica de que esta é uma medida benéfica.

Obviamente, este questionamento não se aplica aos relacionamentos extraconjugais ou com parceiros(as) não contaminados. Todavia, devemos lembrar que uma parcela relevante de portadores do HPV têm lesões subclínicas em regiões não protegidas ou evitadas pelo condom (base do pênis, bolsa escrotal e vulva).

Ainda assim, apesar do risco menor de contaminação com o uso do condom, lembraria que um risco pequeno repetido várias vezes, como numa nova relação estável, têm aumento exponencial, podendo tornar-se relevante. Nestas novas relações o casal deve ser orientado para a possibilidade de contaminação e deve estar atento ao controle citológico.

Por fim, questionamos a recomendação de medidas "higienistas" como não compartilhamento de toalhas, vasos sanitários, etc., que além de não terem efeito sobre a transmissão viral, ampliam a problemática desta infecção do casal para o restante da família, amigos, colegas de trabalho, etc.

Conclusões

Até que surjam evidências de eficácia terapêutica, parece-nos que a infecção pelo HPV demanda apenas controle citológico e/ou colposcópico para o diagnóstico e tratamento das NICs e, conseqüentemente, prevenção de câncer.

O sucesso no tratamento das formas clínicas da infecção pelo HPV deve ser considerado como apenas o desaparecimento das lesões visíveis e não a cura da infecção propriamente dita.

Nossos pacientes devem ser assegurados de que serão portadores de uma infecção por, possivelmente, muitos anos, sem que tenhamos atualmente meio de curá-los. Deverão aprender a conviver com um risco, como tantos outros a que todos nós estamos expostos, sem que os obriguemos a seguir condutas inefetivas ou danosas ou, ainda, mudarem radicalmente seus hábitos sexuais, conjugais ou sociais. Por outro lado, devem confiar que temos ferramentas suficientes para o diagnóstico e tratamento efetivo das NICs e, conseqüentemente, evitar o desenvolvimento neoplásico.

Referências bibliográficas

  1. IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans, 1995. Human Papillomaviruses. IARC Monographs, 64:83-86.
  2. Schiffman, M.H., 1992. Recent progress in defining the epidemiology of human papillomavirus infection and cervical neoplasia. Journal of the National Cancer Institute. 84(6): 394-398.
  3. Ferenczy, A., s.d.: HPV infections: current concepts, new developments. N.P. (separata remetida pelo autor em 1997).
  4. Villa, L.L., 1997. Human Papillomaviruses and cervical cancer. Advances in Cancer Research, 71:321-341.
  5. Bosch, F.X.; Manos, M.M.; MuÑoz, N. et al. International Biological Study on Cervical Cancer (IBSCC) Study Group, 1995. Prevalence of human papillomavirus in cervical cancer: a worldwide perspective. Journal of the National Cancer Institute, 87: 796-802.
  6. Fisher, S.G., 1994. Epidemiology: a tool for the study of human papillomavirus-related carcinogenesis. Intervirology. 37: 215-225
  7. Ling, M.R., 1992 a. Therapy of genital human papillomavirus infections. Part I: indications for and justification of therapy. International Journal of Dermatology. 33(10): 682-686.
  8. Reid, R. & Campion, M.J., 1989. HPV-associated lesions of the cervix: biology and colposcopic features. Clinical Obstetrics and Gynecology. 32:157-179.
  9. Ferenczy, A., Mitao, M., Nagai, N., Silverstein, S.J. & Crum, C.P., 1985. Latent papillomavirus and recurring genital warts. The New England Journal of Medicine. 313(13): 784-788.
  10. Phelps, W.C. & Alexander, K.A., 1995. Antiviral therapy for human papillomaviruses: rationale and prospects. Annals of Internal Medicine. 123: 368-382.
  11. Krebs, H.-B., 1989. Management strategies. Clinical Obstetrics and Gynecology. 32(1): 200-213.
  12. Ling, M.R., 1992b. Therapy of genital human papillomavirus infections. Part II: Methods of treatment. International Journal of Dermatology. 31(11): 769-776.
  13. Jacyntho, C, Almeida Filho, G & Maldonado, P, 1994. HPV- Infecção Genital Feminina e Masculina. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter Ltda
  14. Kraus, S.J. & Stone, K.M., 1990. Management of genital infection caused by human papillomavirus. Reviews of Infectious Diseases. 12 (supl.6): S620-S632.
  15. Hatch, K.D., 1991. Vulvovaginal human papillomavirus infections: clinical implications and management. American Journal of Obstetrics and Gynecology. 165: 1183-1188.
  16. Di Paola, G.R., 1989. HPV y Neoplasia Intraepitelial Genital. Buenos Aires: Eudeba.
  17. Crum, C.P. & Nuovo, G.J., 1991. Genital Papillomaviruses and Related Neoplasms. New York: Raven Press.
  18. Reid, R., 1996. Treatment of HPV-associated disease. In Papillomavirus Reviews: Current Research on Papillomaviruses. (Lacey, C., ed.) Leeds: Leeds University Press.
  19. Oxman, A.D. & Guyatt, G., 1988. Guidelines for reading literature reviews. Canadian Medical Association Journal. 138: 697-703
  20. Mulrow, C.D., 1987. The medical review article: state of the science. Annals of Internal Medicine. 106: 485-488.
  21. Cook, D.J., Sacket, D.L. & Spitzer, W.O., 1995. Methodologic guidelines for systematic reviews of randomized clinical trials in health care from the Potsdam consultation on meta-analysis. Journal of Clinical Epidemiology. 48(1): 167-171.
  22. Russomano, F.B.: Eficácia de Tratamentos para a Infecção Subclínica pelo HPV sem neoplasia intraepitelial: revisão sistemática da literatura. Tese de Mestrado. IFF/FIOCRUZ, 1997.

 

Abstract

Treatment of Human Papillomavirus (HPV) subclinical infection is a controversial issue. It’s a very prevalent disease and has a strong association to cervical cancer. There are a lot of therapies proposed but many experts agree that it is a difficult task and that no treatment can eradicate the virus. Some authors, recommend therapies ranging from the destruction of the transformation zone to the excision of all identifiable HPV lesions. Others, in face of the limitations mentioned, recommend that these patients should be kept under straight observation, in order to detect and treat intraepithelial neoplasia, if it comes up. Other measures are discussed in face of it’s ineffectiveness and psychological consequences. Also, we try to explain the disagreement between authors in light of the methodology used in their reviews of the medical literature and show the results of a systematic review about the efficacy of treatments to HPV subclinical infection of the cervix without CIN. We conclude that, until some evidence of the efficacy of some treatment of subclinical HPV infection of the uterine cervix appears, these patients must be kept under cytological and colposcopic control, in order do avoid cervical cancer.

Quadro 1 - Consenso quanto ao tratamento da infecção pelo HPV

Quadro 2 - Resumo da posição de vários autores quanto à conduta na infecção subclínica pelo HPV no colo uterino.

Autor

Ano

País

Conduta

Krebs

1989

EUA

Destruição da zona de transformação (ZT)

Di Paola

1989

Argentina

Exérese de todas as lesões identificáveis

Kraus & Stone (CDC)

1990

EUA

Controle citológico e colposcópico e tratamento das NICs para prevenção de câncer

Crum & Nuovo

1991

EUA

Exérese de todas as lesões identificáveis

Ling

1992

EUA

Controle citológico e colposcópico e tratamento das NICs para prevenção de câncer

Koss

1992

EUA

Controle citológico e colposcópico e tratamento das NICs para prevenção de câncer

Jacyntho

1995

Brasil

Tratar de todas as lesões identificáveis

De Palo

1995

Itália

Destruição da ZT

Reid

1996

RU

Destruição da ZT

Benedet (c.p.)

1997

Canadá

Não tratar

Hatch (c.p.)

1997

EUA

Não tratar

Meisels (c.p.)

1997

Canadá

Controverso

Schneider (c.p.)

1997

Alemanha

Controverso

Ferenczy (n.p.)

1997

Canadá

Destruição da ZT quando persistente ou presente tipos de HPV de alto ou médio risco



Voltar